terça-feira, 2 de maio de 2017

S A U D A D E

Eu entrei na pequena sala arredonda. Era um ambiente muito aconchegante, em vista de minhas longas viagens em meu pequeno e quadrangular modulador dimensional. O velho me olhou sorridente e acenou para que eu me sentasse na poltrona livre. Me serviu de chá e cruzou as pernas, aguardando minha fala. Eu nada disse. Não sabia por onde começar. 

"Como posso lhe ajudar?" Ele disse. Isso me consolou. Eu não diria nada. Sou melhor como antagonista. 

"Quero escolher algumas saudades. E me livrar de outras" 

"Muito bem. O senhor está ciente dos riscos de dispensar saudades, não está?"

"Por completo. Eu li o manual"

"O manual não contém tudo. Foi feito com base numa experiência próxima de várias pessoas. Existem outros efeitos que serão exclusivos de sua consciências. Um deus ignorado tornará um demônio"

"Tem coisas que não quero sentir saudades. Elas me doem"

"Talvez não esteja sentindo saudade. Saudade é aquilo que já passou e que lhe fez bem, num sentimento que te dá vontade de viver aquilo novamente. Talvez seja nostalgia..."

"Tenho saudades de coisas que me machucam"

"Saudade de coisas que machucam são traumas. É isso que você tem"

"Não sei se me entende, doutor... Tenho saudades de pessoas que nem conheci. De coisas que nem vivi"

Ele respirou fundo por longos segundos. Fez algumas anotações em seu dispositivo móvel de retina. Me olhou novamente. 

"Seu caso é, em iguais proporções, simples e complexo. Este diagnóstico nos é, na mesma medida, familiar e distante. Trata-se de um fato ainda não concluído, mas amplamente estudado. Doutores do mundo todo tem teorias para isso. A mais aceita é que nossa formatação de pensamento é baseada numa linha do tempo que segue uma projeção para o futuro, ou seja, para frente. Digamos que neste novo estágio de consciência, conseguimos ter insights  de pensamentos e sensações que ainda não experimentamos, mas que um dia assim iremos..."

"E como eu curo isso?"

"Vivendo."

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